O Atelier-Museu Júlio Pomar/EGEAC inaugura a exposição “JÚLIO POMAR: PINTURA DE HISTÓRIAS”, com curadoria de Alexandre Pomar e Sara Antónia Matos, no dia 29 de abril, sexta-feira, das 17h às 20h. Reunindo cerca de 40 obras, sobretudo de pintura, a exposição procura mostrar a forma como Júlio Pomar, desde a década de 1980, retrabalha e explora as várias narrativas, histórias e mitos que constituem um imenso património de referências culturais.
Por volta de 1982-85 (tempo dos azulejos para o Metro de Lisboa e das variações sobre Edgar Poe e a “Mensagem” de Fernando Pessoa) começou um novo capítulo da obra de Júlio Pomar, em que se acentua ainda mais a importância dos temas literários e aparecem as figuras da mitologia clássica, com séries dedicadas ao Rapto de Europa, a Adão e Eva, Diana e Acteon, Salomé, Ulisses e as Sereias, etc. É um grande «período tardio», como disse Hellmut Wohl na exposição “A Comédia Humana”, em 2004, no CCB, no qual Pomar volta a uma pintura gestual, em obras de grande formato, onde estão presentes o humor, a alegria e a liberdade, de viver e de pintar, a intenção crítica e a invenção narrativa e pictural. A pintura de Pomar torna-se ficção pictural, teatro, comédia e drama, transformando as histórias tradicionais em versões próprias, onde se exploram a constante metamorfose das figuras e a aceitação do acaso. O “estilo tardio” é de facto uma nova maturidade (e poder-se-ia também dizer uma nova juventude, pela sua energia e irreverência).
Abordando os mitos históricos e outras narrativas, Pomar reencontra-se com a Pintura de História e cria uma original e poderosa PINTURA DE HISTÓRIAS, repensando o estatuto da figura e da narração, à distância da ilustração que tantas vezes o ocupou. Assim, o título da exposição remete quer para a revisitação da História da Arte e dos seus mestres (Rubens, Poussin, Vermeer), quer para histórias inventadas e/ou recriadas pelo pintor, podendo dizer-se que aí reside uma das componentes conceptuais desta produção. A invenção de histórias faz parte da recriação e continuidade da História e a sua reescrita de um alargamento necessário à atualização histórica. Por outras palavras, os mitos sobrevivem ao tempo através do recontar de histórias, e Pomar, não pretendendo descartar-se do passado, parece apropriar-se dele para o apresentar em novas versões ou possibilidades pictóricas, potenciando a ambiguidade e o enigma inerente à figura, através do gesto e da abordagem abstrata.
São alguns dos novos temas e outros temas de sempre, como Ulisses e D. Quixote, que a próxima exposição do Atelier-Museu Júlio Pomar apresenta em obras das últimas décadas de atividade. Segundo Hellmut Wohl, o objetivo formal do artista, nas pinturas das últimas décadas de produção, é «a interacção e a integração da forma, do espaço e da cor através de pinceladas gestuais» (“A Comédia Humana”, pág. 9). Com efeito, uma das características das pinturas agora apresentadas é a ausência de fundos, de perspetivas e representações espaciais que permitam a identificação de um contexto concreto. De uma forma geral, nestas pinturas, as figuras gravitam, entrelaçam-se entre si, parecendo flutuar em fundos de cor abstratos. Formas e fundos, ambos constituídos por elementos cromáticos, confundem-se e crepitam entre si, podendo assumir as duas condições em simultâneo, numa miscigenação de camadas e planos, que se oferecem como terreno de sensações, para o espectador, campos de mergulhos e movimentos de ida e volta.
Disso são exemplo as pinturas referentes a D. Fuas, particularmente o tríptico (Col. Ilídio Pinho), em que as figuras – o veado (de Tróia, com rodas), o próprio D. Fuas e também uma fumadora de ópio, de pernas para o ar – pairam e rodopiam num espaço sem sujeição à gravidade, fundindo manchas e formas, e com isso também a hierarquia entre planos. Pomar subverte o sentido mitológico do tema: o cavaleiro que, andando atrás de uma peça de caça num dia de nevoeiro, é detido por milagre de Nossa Senhora da Nazaré junto ao extremo do precipício de onde o veado se lança. No outro Dom Fuas (Col. Millennium) o artista faz figurar o veado, de frente para o espectador, que, já em queda, deixa atrás de si um plano de fundo nebuloso. Ao lado, D. Fuas avança a cavalo mas passou a ser um cavaleiro tauromáquico, com o seu tricórnio tradicional, que enfrenta o touro negro que irrompe na tela. Deste modo, o pintor acentua, mais uma vez, o lado enigmático do mito, e subverte livremente as narrativas ao reinventar as suas figuras. Reza a lenda que o veado seduziu de tal modo o caçador que só poderia estar possuído pelo demónio.
Não menos importante no que diz respeito a esta inversão das hierarquias na composição pictórica são as obras dedicadas a Adão e Eva, em diferentes versões, ocupando as figuras posições pouco convencionais. No mito original, Eva é enganada pela serpente e levada a comer o fruto proibido da árvore do conhecimento. Na sua pintura, Júlio Pomar inverte as posições de força das figuras e desconstrói as iconografias tradicionais associadas ao mito, por exemplo, prendendo a serpente num frasco de vidro (garrafas de licor da Toscana), passando Eva a domar a víbora.
Isto leva-nos a questionar: que significados ocultos transportam os mitos? De que forma a representação em Pomar evidencia as dimensões mais vedadas da sexualidade e do erotismo?
As narrativas mitológicas, carregadas de valor moral, escondem (e exploram, claro!) quase sempre as dimensões mais explícitas da sexualidade e da violência, mas, em Júlio Pomar, as simbologias e narrativas mais estabilizadas são como que refratadas com humor e ironia, colocando à vista a sua componente interditada. A este propósito pode ser lembrada a pintura “Imitado de um vaso grego”, em que as figuras, entrelaçadas entre si, assumem a configuração de diabos e são pintadas de vermelhos, explorando as cores tórridas do fogo, do sangue e da carne. Outras vezes, as figuras clássicas são misturadas com figuras oriundas da cultura pop e popular, vendo-se por exemplo o rato Mickey ou o pato Donald a espreitar em contextos inusitados, descontextualizados das histórias que lhes são próprias, pervertendo inclusive a simbologia e estatuto das figuras através das abordagens e combinações pictóricas que mascaram e tornam os seus sentidos enigmáticos. A tela é o lugar de uma arena onde se confrontam forças: as forças provenientes do choque e da sobreposição entre figuras, e as forças provenientes das cores e da matéria pictural, numa massa que se confunde e onde as próprias matérias plásticas parecem ganhar capacidade deglutinadora.
Nas últimas décadas, a sua pintura fica habitada e pulverizada de figuras estranhas, por vezes bizarras: piratas, diabos, sereias, gorilas, touros, cabras e porcos, confluindo para um cruzamento entre cultura erudita e popular, clássica e pop – «faces de uma mesma moeda», como o pintor gostava de frisar.
O tratamento das narrativas e figuras mitológicas na arte leva então a questionar se existe uma memória visual coletiva. Como propagar e disseminar as histórias da História e as morais a elas inerentes, através dos tempos?
O “Rapto de Europa”, enredo amoroso de Júpiter com Europa, talvez retratando dimensões políticas e de conquista territorial, tão a propósito nos tempos que correm, coloca o dedo na ferida sobre o tipo de imagens e de símbolos que constituem a nosso imaginário coletivo. Na iconografia mais tradicional, Europa (tradicionalmente representada por uma ninfa) é corporizada por uma mulher nua que Júpiter rapta violentamente, encarnado num touro, exercendo e pondo em evidencia a disparidade de forças, também presente na fundação das sociedades patriarcais. Júlio Pomar trabalhou o tema em cinco representações que serão reunidas no catálogo, nas quais, ironicamente, Europa se senta divertidamente sobre uma motoreta guiada pelo touro, e em que o rapto se assemelha mais a um momento de diversão do que a um ato de violência e usurpação.
No seu conjunto, as obras em exposição, recriando a História e inventando histórias, desocultando dimensões perversas associadas à imagem, que simultaneamente revela e esconde, como se a tela fosse assumida como um ecrã onde os signos emergem e submergem, são perdidos e recuperados, mostram como o futuro só pode ser inventado a partir de fragmentos do passado, da sua recombinação e recriação.
Pomar é exímio nessa recombinação, dando corpo ao próprio movimento entre os signos da História através da sua pintura. Repare-se em “Ulisses e as Sereias” (Col. Galeria Valbom), em que do fundo emerge uma grande caveira espreitando os protagonistas, particularmente as sereias que dançam e se exibem em frente de Ulisses.
Noutra das telas dedicada ao tema, Ulisses, com três pares de olhos, como se estivesse capacitado de uma aptidão visual extraordinária, tapa os ouvidos para não escutar e não sucumbir ao canto das sereias. Parece estar em jogo um crepitar constante entre vida e morte, passado e presente, plasticamente sugerido pela miscigenação das figuras, das cores e pinceladas. A ambiguidade que surge da composição parece potenciar e propagar leituras outras, para lá das tradicionais narrativas, desse modo veiculando também uma continuidade e um futuro às histórias.
Divertindo-se, talvez Pomar queira simplesmente dar corpo a uma História que se vai recompondo de histórias, ao mesmo tempo que desconstrói convenções e morais estabilizadas, através de uma exploração baconiana das figuras, que se invadem mutuamente, despedaçam e avançam umas sobre as outras, num registo quase carnal, devorador e antropofágico.
Esta exposição, maioritariamente constituída por pintura, apenas pontuada por alguns desenhos, procura evidenciar que a Pintura de História e de histórias é, não um retorno unidirecional para o passado, antes um impulso para a construção de uma história futura, ampla, pulverizada de muitas outras, com lugar para figuras bizarras, diferenças, estranhezas, além de toda a convencionalidade.
No decurso da exposição publicar-se-á um catálogo com textos de vários autores [edição do Atelier-Museu Júlio Pomar / Documenta] e imagens das obras instaladas no espaço.